Sabem aquela sensação boa de terem um novo desafio pela frente? Aquele tipo de desafios que vos vai demorar horas, dias, semanas? Daqueles que vêm com obstáculos e reveses? E depois, à quarta tentativa, consegues chegar ao resultado maravilhoso, o que enche o olho e agrada a todos os sentidos…
Pois hoje queria partilhar convosco um desses momentos, um de tantos que vou tendo na minha cozinha.
Dados lançados
Um dia acordei com vontade de fazer um bolo de laranja. Fui buscar a minha receita. Tantas vezes a fiz que praticamente já nem preciso de olhar para o papel. Resultado de muitos aperfeiçoamentos, desistências, frustrações e finalmente uma luz ao fundo do túnel a indicar o caminho para o sucesso.
Até podia repetir a receita. Podia. Mas há qualquer coisa no fazer coisas de forma igual vezes sem conta que não me inspira minimamente. Até porque fazemos isso todos os dias. Chama-se rotina. E na minha cozinha não quero rotinas. Na minha cozinha quer-se drama, tragédia, humor, uma boa dose de sarcasmo e muito mas mesmo muita auto-ironia. Isto para lidar com aqueles momentos menos bons e insólitos em que a massa vai para todo o lado menos para a forma. E acabamos o dia a limpar tecto, paredes e chão com o ego do tamanho de um musaranho sem pelo.
Sendo assim, estavam os dados lançados para a conquista de novos caminhos. Arregacei mangas, peguei na caravela (que é como quem diz, livro de receitas) e toca a magicar uma nova forma de fazer as coisas. E depois lembrei-me: lúpulo. Lúpulo? Sim, lúpulo. Era coisa que ainda não tinha experimentado. Com a vergonha do tamanho do mundo por ter marido cervejeiro e ainda não ter elaborado uma receita com o dito cujo, lá fui investigar que lúpulo usar nestas circunstâncias. Com a supervisão entusiástica do maridão que nestas andanças é cobaia mais do que voluntária (juntamente com a prole).
Após várias hipóteses, optei por usar Amarillo por ter um perfil mais cítrico e, claro, por se adequar melhor ao sabor da laranja… um citrino! O truque seria fazer o meu bolinho como de costume, criar uma espécie de xarope de laranja e amarillo e regar bem o bolinho depois de desenfornado e desenformado com esse elixir lupulado.
Sem mais demoras e porque o texto já vai longo deixo-vos com a receita propriamente dita e o caminho por vezes hilariante para chegar ao resultado final (que é como quem diz “Preparação”).
Bolo de laranja e amarillo
Ingredientes:
Para o bolo:
-
230 gr de manteiga
-
350 gr de açúcar branco
-
3 ovos
-
2 c chá de aroma de baunilha
-
raspa de duas laranjas
-
300 gr de iogurte branco (leite ou soja)
-
375 gr de farinha
-
5 c chá de fermento
-
1 c chá de bicarbonato de sódio
Para o elixir de laranja e amarillo:
-
400 ml de sumo de laranja
-
300 gr de açúcar branco
-
30 gr de pellets de Amarillo
Preparação:
Entrar na cozinha com o entusiasmo de um marinheiro prestes a embarcar e com o ego de uma mestre pasteleira digna de 5 estrelas Michelin. Constatar que a cozinha está um caos, com pratos por lavar e balcões que já viram dias melhores. Armar-se em inspectora de CSI e indagar qual dos teus 3 filhos andou a fazer experiências na cozinha sem se dar ao trabalho de deixar tudo limpinho. Reflectir sobre decisões tomadas no passado, sobretudo aquelas que te levaram a ter 3 filhos adolescentes ao mesmo tempo. Respirar fundo e contar até 10. Dar uma limpeza grande à cozinha com aquela energia súbita que nos vem quando estamos piurs@s.
Começar a pegar nas tralhas todas para fazer o bolo (finalmente). Preparar os ingredientes um a um, com a precisão de um técnico de laboratório e a excitação de um fedelho de cinco anos. Ir buscar à máquina os utensílios que precisas porque os putos usaram quase tudo o que havia na cozinha. Finalmente, observar que não falta nada para começar a empresa, tipo reunião de zoom com toda a gente presente e com a câmara ligada.
Aquecer a manteiga até ter uma consistência amolecida, mas sem estar propriamente derretida. Juntar o açúcar branco e bater bem até se conseguir uma consistência homogénea, cremosa e fofa.
Juntar os ovos um a um sem casca. Bater bem até ter uma consistência homogénea. Ouvir a miudagem a discutir na sala ao lado. Mandar dois berros para manter a coisa sob controle. Ponderar arranjar daquele material isolante que se usa nos estúdios de gravação para isolar as paredes da cozinha. Juntar as colheres de chá baunilha. Raspar as duas laranjas, levando uma eternidade. Pensar o quanto se odeia raspar laranjas. Ou citrinos em geral. Juntar as raspas de laranja à mistura que entretanto começa a ser inspeccionada pelos 3 filhos que de repente se aperceberam que afinal existe cozinha. Enxotar miudagem e ameaçar com colher de pau que não se usa para mais nada porque… usar madeiras para bater a massa dos bolos? Não.
Misturar 5 colheres de fermento e 1 de bicarbonato de sódio à farinha. Perder a conta à quantidade de colheres que se deitou porque entretanto um dos teus inquilinos permanentes te interrompeu o raciocínio para te mostrar um video qualquer supostamente hilariante sobre Minecraft. Perguntar-se retoricamente “Porquê eu?” 3 vezes. Olhar por cima do ombro a ver se o Bettlejuice apareceu porque disseste a mesma coisa 3 vezes e porque fazes parte daquela geração nostálgica obcecada com os anos 80. Achar “olha que referência gira” e decidir contar aos miúdos essa cena do Bettlejuice. Olhar para as caras vazias, completamente clueless e cheias daquela condescendência irritante dos teus 3 membros da Geração Z. Aperceber-se em jeito de ficha caída que pertences a outra geração e que estás a ficar velh@.
Entretanto, resolver aceitar a entropia e decidir que puseste a quantidade certa de fermento. E não se fala mais nisso. Juntar o iogurte e a farinha em alternância. Bater moderamente que é para o glutén, esse desfazedor de fofinhice nos bolos, não se desenvolver em demasia.
Deitar a mistura obtida em duas formas com papel vegetal (ou numa forma se depois se quiser cortar o bolo ao meio). Responder pela quinta vez aos restantes membros do agregado familiar que “não, ainda não está pronto!”. Colocar as formas no forno a 180º pelo tempo necessário (cerca de 20 a 30 minutos), usando a famosa técnica do palito (tendo o cuidado para não abrir o forno demasiadas vezes).
Respirar fundo, pensando “pronto, uma coisa já está”. Colocar dois quartos (cerca de 300 ml) do sumo de laranja ao lume até ferver e deixar reduzir até metade. Juntar o açúcar e deixar engrossar até obter uma calda de açúcar (100º C de temperatura – olha-me só o nível de precisão da coisa!).
Reservar (acho que fica bem aqui esta palavra… “Reservar”… Dá um ar solene à coisa!)
Colocar o lúpulo na outra parte de sumo de laranja com um daqueles filtros de chá (ou roubar um à cervejaria) e deixar aquecer até aos 62º C. Manter nessa temperatura durante 10 minutos. Retirar e constatar que ficou um amargor jeitoso e nada mau. Filtrar bem o lúpulo e juntar o sumo de laranja lupulado à calda de açúcar de laranja.
Lembrar-se do bolo no forno em jeito de “ai o bolo!”. Retirar do forno e deixar arrefecer. Cortar e moldar as duas parte de bolo até que fiquem planas e prontas a regar. Enxotar eventuais intrusos que entretanto entraram na cozinha para te roubar as aparas que acabaste de cortar. Ameaçar com corte de tempo ao telemóvel que parece ser a única coisa que os assusta.
Desenformar quando estiver frio e regar tudo com o maravilhoso elixir. Usar um recheio a gosto entre as duas partes e juntá-las (aconselha-se vivamente uma ganache de chocolate preto, 70%, claro). Cobrir o bolo final com o resto do recheio. Servir e ver o bolo a desaparecer em fatias. Olhar para a cara desapontada dos teus filhos quando constatam que afinal o bolo tem – palavras deles – “tipo, cerveja” e é “tipo, bolo de adulto”. Perder tempo a explicar que lúpulo e cerveja são coisas diferentes, falar de brassagem e de fermentação e que o bolo não é alcoólico. Desistir de explicar coisas fixes a gente ignorante e aproveitar para ficar a comer o resto do bolo com o maridão, fazendo a mesmíssima figura triste do Gollum com a porra do anel.
Bom proveito! :)
Deixa o teu comentário