Tudo começa com uma ideia ou uma vontade.

No caso da nossa 42 reuniram-se as duas coisas. Estamos em Setembro de 2020, em ano de pandemia, e a vontade era a de celebrar um aniversário, o meu, de forma diferente: a fazer cerveja.

A vontade e a ideia

A vontade e a ideia

É que estou nisto da produção cervejeira há relativamente pouco tempo e esse bichinho irreverente e curioso da cerevesia foi sendo despertado pouco a pouco pelo maridão italiano, companheiro de tantas tropelias e desafios. Esta era mais uma aventura para a qual ele me convidava a entrar com a certeza de quem conhece todos os cantos da casa da minha pessoa e com a valiosa informação a priori que não sou gaja de rejeitar um bom desafio, por mais absurdo ou surreal que inicialmente me possa parecer.

Assim, já no início de 2020 havia a vontade e o aniversário era o momento ideal para a concretizar, mais uma vez, arregaçando mangas mas, desta feita, colocando as minhas próprias mãos no malte pela primeira vez e assumindo o controlo do bicho.

A ideia estava ali à espera de ser encontrada, no cantinho da nossa consciência, nascida de sensações e experiências anteriores, degustações de chocolates genoveses e misturas improváveis com chá que nos impeliram a pensar: e isto numa cerveja como seria?

Por aquilo que era o nosso conhecimento e depois de uma pesquisa rápida, chegámos à conclusão que não haveria assim tantas cervejas escuras com chá. Muito menos uma russian imperial stout. Urgia então a descoberta e a brincadeira boa. Pensámos em vários tipos de chá e o que nos pareceu ser o mais apropriado seria um chá preto, de sabor térreo e forte. O marido, italiano e amante de tudo o que é português, foi o que sugeriu a Gorreana, o orange pekoe maravilhoso que sempre fez as suas delícias. E a mim, portuguesa e amante de tudo o que é italiano, surgiu-me a ideia de juntar mais qualquer coisa para o nosso puzzle enigmático ficar completo: um citrino italiano.

À procura do citrino perdido

Mas não seria um citrino qualquer. Já há uns anos me deixei apaixonar por uma bebida italiana que lembra coca-cola mas não é. Estranha-se, estranha-se mais um pouco e descobre-se que se andou a beber bebidas gaseificadas de forma errada durante uma vida inteira. Quem prova pela primeira vez um Chinotto acaba por ficar com o vício bom do punch familiar e poderoso desse citrino, que nos deixa perceber que a história de sabor daquela bebida ainda não acabou, com aquele plot twist final e inesperado. A coca-cola, essa, ficou para sempre relegada para segundo plano, com o seu caracter eternamente doce e pouco surpreendente.

Por estes sobejos motivos queríamos incorporar, de uma forma ou de outra, esse citrino especial.

Passar das palavras à acção traduziu-se, no entanto, numa empresa difícil, improvável e que acabou por não ter lugar no comboio desta empreitada. Ora porque não se conseguia encontrar casca seca desse citrino, ora porque não havia forma alguma de encomendar árvores de fruto de Itália para Portugal, para citar algumas soluções que procurámos.

Que fazer então? Com o meu coração meio destroçado por não poder navegar com esse barquinho de aromas, senti-me socorrida pelas palavras, mais uma vez, do segundo tripulante desta viagem: “E que tal se usássemos bergamotto?” A ideia de juntar chá preto e bergamotto não seria nova, como pode confirmar qualquer embalagem de Earl Grey que se vende pelos supermercados deste país fora. Mas isto numa imperial stout tinha os dados lançados para coisa buona e giusta.

Então e o número 42?

E foi assim que fizemos a travessia dos 41 para 42 anos, com tempo sobejo de boil, muito cheirinho bom a maltes escuros pela casa fora (a miudagem discordou claramente desta minha opinião…) e uma história de sabor nova que depois de duas fermentações foi engarrafada e colocada em barril para ser contada a quem a quisesse saborear.

Sempre no espírito de duas pessoas com idade para ter juízo mas que nunca o tiveram (e ainda bem!), decidimos chamar a esta nossa nova mixórdia “42”, de significado imediato relacionado com a idade aqui da je (agora já nos 43 e com saudades desse número especial), mas que por acaso tinha outras nuances, algumas delas que ainda estamos a descobrir.

Por exemplo, o número 42 é num dos 4 livros da saga “The Hitchhiker’s Guide to the Galaxy” de Douglas Adams, a “resposta para a derradeira e mais importante questão sobre a vida, o universo e tudo”, calculada por um enorme super-computador chamado “Deep Thought”.

Lewis Carroll, o famoso autor do livro “Alice no país das Maravilhas” e também um matemático apaixonado pelo número 42, decidiu incorporar esse número várias vezes ao longo das suas obras. Estas são apenas duas instâncias do uso desse número:

  • o livro mencionado tem exactamente 42 ilustrações;

  • a regra nº 42 que surge na cena de julgamento de Alice nesse livro ditava que “Todas as pessoas que tivessem mais do que uma milha de altura deveriam abandonar o tribunal.”.

Para além de muitos outros significados de que este número se reveste, seja no mundo da matemática, da ciência, na tecnologia e até em âmbito religioso (como podem confirmar aqui), viemos a descobrir também algumas coincidências pessoais engraçadas com este número:

  • 42 foi o número do autocarro que o Franco, na altura com 15 anos feitos (idade legal para consumo de bebidas alcóolicas em Itália) apanhou para ir pela primeira vez beber a sua primeira cerveja ao mítico bar Il Galleone, um conhecido spot de cerveja importada e artesanal nos anos 80/90;

  • na nossa cervejaria temos, neste momento, exactamente 42 grades de 24 garrafas de 33 cl (não foi combinado, juro!);

  • o anagrama do número 42 foi a idade que eu tinha quando nos casámos em 2003 (24 anos);

  • quando viemos viver para o Porto, em 2010, os nossos dois filhos mais novos tinham exactamente 4 e 2 anos feitos.

Claro que não havia maneira de ignorar este número tão mágico, estava destinado a fazer-nos companhia, qual terceiro mosqueteiro numerológico!

O concurso e a surpresa

Depois, armados ao pingarelho mas, sobretudo, porque queríamos o feedback valioso e sério dos juízes do concurso, decidimos enviar umas garrafitas para o VIII Concurso Nacional de Cervejas Caseiras e Artesanais. A ver se o que tínhamos congeminado era coisa que prestasse.

Completamente ignorantes do que se iria passar a seguir.

Ficou para sempre gravado na nossa memória aquele momento fantástico no final do dia 20 de Novembro de 2020, em que começaram a chover mensagens de parabéns no grupo de Homebrewers do Porto, família a quem tanto devemos e da qual fazíamos parte já há uns meses largos, cujas reuniões catraienses seguíamos religiosamente desde o início e com as quais o nosso conhecimento cervejeiro cresceu exponencialmente. E aquele telefonema espectacular do Ricardo Queirós do Catraio a dizer-nos com toda a pujança e entusiasmo “Foda-se, ganharam!!”, entre muitos outros bons e épicos momentos.

Arrecadámos o 1º prémio na categoria experimental (34C) com a nossa menina 42! Nem queríamos acreditar!

Tempo de metamorfoses boas

Nada nos prepararia para a alegria, o entusiasmo e as mudanças que se operaram nos meses a seguir: as externas e, sobretudo, as internas. As pessoas fantásticas que fomos conhecendo, os conhecimentos que fomos acrescentando, as boas e más experiências pelo caminho que ensinam sempre tanto. Em particular, a empreitada fabulosa de produzirmos 420 lts da nossa cervejinha com o mítico Francisco Campino dos Piratas Cervejeiros e sob a insígnia da marca Carácter da Lena e do João, algo que vai ficar bem guardadinho nos anais da história da nossa FdS! 

Experimentámos receitas, criámos lotes, expandimos a nossa “fabbrichetta” a agora eis-nos aqui com um novo capítulo começado no livro das nossas aventuras.

Temos uma gratidão profunda por todos os que acreditaram e acreditam em nós, que nos aturaram e aturam e que nos ajudaram a colocar pedra sob pedra para construirmos o nosso caminho, o que nos levou até hoje.

A todos vocês o nosso bem haja e venham daí beber uma cervejinha!